Sepultado vivo - O Programa MIT-Portugal visto de dentro
O início
Este artigo é um exercício de civismo. Pretende informar os leitores sobre o tão discutido programa MIT-Portugal. O que o leitor decidir fazer com a informação é sua responsabilidade. Uma vez que este artigo não é um romance, vou começar por lhe contar o fim. A controvérsia relativa ao programa MIT-Portugal centra-se num problema profundo que continua a afligir o desenvolvimento económico de Portugal e a determinar que tipo de sociedade queremos ser no futuro: o autoritarismo e o paternalismo existente em certos meios.
Por agora, regressemos ao ano de 1999, momento em que o MIT estabelecia com a Universidade de Cambridge no Reino Unido a sua segunda parceria internacional de grande envergadura (a primeira tinha já sido criada com Singapura), com um orçamento de cerca de 140 milhões de dólares, 70% proveniente do Governo Británico e os restantes 30% originários do sector privado. Para Director Executivo do programa Cambridge-MIT era nomeado o Prof. Vander Sande, o qual tinha assumido um papel crucial no lançamento da Aliança MIT-Singapura. Nessa altura fazia eu o programa de pós-doutoramento no MIT no grupo do Prof. Vander Sande, pelo que assistia em primeira mão à criação do programa Cambridge-MIT. Em 1999, encontrava-se também no MIT o Prof. José Duarte, então doutorando, hoje docente no Instituto Superior Técnico, a trabalhar sobre a orientação do Prof. William Mitchell, reitor da Escola de Arquitectura. Neste contexto surgiram, inicialmente entre nós dois portugueses e logo depois com os Professores Vander Sande e William Mitchell, as primeiras conversas sobre uma possível implementação do Programa MIT-Portugal.
Os brain-stormings preliminares produziram indubitavelmente um projecto ambicioso. Teriamos que convencer o MIT. Teriamos que convencer as universidades, a indústria e o governo português. Teriamos que angariar financimento. Contudo, o impacte na economia portuguesa seria potencialmente extraordinário. Uma oportunidade única. A possibilidade de colocar Portugal no «palco» mundial, alterando a percepção de países terceiros a nosso respeito Mas como? Que tipo de projecto deveria ser este MIT-Portugal?
O programa MIT-Portugal que germinou em 1999 no MIT, e amadureceu no âmbito da Unidade de Coordenação do Plano Tecnológico em 2005, tinha como paradigma lançar a terceira grande parceria internacional do MIT, através da criação de projectos de investigação e desenvolvimento (I&D) e o registo de patentes, a ser desenvolvidos por equipas interdisciplinares compostas por investigadores portugueses, empresas portuguesas e investigadores do MIT. O programa pretendia ainda transferir a tecnologia resultante dos projectos de I&D para as empresas portuguesas existentes, dar origem à formação de novas empresas de base tecnológica e lançar no mercado global produtos de alta tecnologia. Para atingir este objectivo, a parceria Portugal-MIT iria 1) promover projectos de I&D em áreas temáticas estratégicas para Portugal (por exemplo, Energia, Oceanos, Biotecnologia, Telecomunicações, Nanotecnologia), tendo as empresas portuguesas como motor, 2) proporcionar formação profissional e ensino universitário de excelência a estudantes e colaboradores das empresas portuguesas, através de aulas por vídeo conferência a partir do MIT e 3) facilitar o intercâmbio entre Portugal e o MIT de investigadores, professores e colaboradores de empresas portuguesas.
O contexto mundial
Para entender a visão do programa MIT-Portugal importa perceber que neste período de globalização o crescimento económico é baseado em tecnologia, inovação e produtos de maior valor acrescentado. Em Portugal, os ganhos em produtividade prometem ser excelentes para as empresas capazes de absorver novas tecnologias. Pelo contrário, para as empresas que tencionam apostar num modelo de trabalho intensivo e mão-de-obra barata o resultado final só poderá ser a falência. Veja bem! Na China e na Índia, o salário médio é cerca de 100 euros/mês. Em Portugal é aproximadamente 800 euros/mês. Na China a população activa é cerca de 700 milhões, na Índia cerca de 375 milhões. Em Portugal cerca de 5 milhões. Para mais, nos países de Leste da União Europeia (EU), a população activa possui na sua maioria habilitações literárias superiores à dos trabalhadores portugueses e é remunerada a níveis consideravelmente mais baixos.
Neste horizonte, que hipótese tem Portugal de competir no mercado global? Quais as consequências a médio e longo prazo? Primeiro, a grande parte da população activa sem formação especializada vai encontrar graves problemas de emprego. Para inverter esta tendência, os trabalhadores portugueses terão que obter mais habilitações, produzir novas ideias, ser extremamente adaptáveis. Segundo, as empresas terão que investir fortemente em I&D, formar alianças com universidades e outras empresas, criar produtos e processos de alta tecnologia.
Nos EUA, no Japão e em muitos países da União europeia (UE), as empresas competitivas possuem os seus laboratórios de I&D e/ou estabelecem relações fortes com as universidades. Em Portugal, o cenário é bastante distinto. As empresas não têm dimensão nem recursos para estabelecerem os seus próprios laboratórios de I&D. As colaborações universidade-empresa existem em grau restricto. Este facto espelha-se bem no número diminuto de pós-graduados a exercer funções na indústria portuguesa (apenas 1% do total). O problema não se resolve, portanto, com mais emprego, mas com emprego que é criativo e promete criar valor acrescentado.
Neste contexto, surge uma pergunta pertinente: Porquê o MIT? Em primeiro lugar, o MIT é uma instituição famosa pelas suas descobertas científicas e tecnológicas (detentor de 61 prémios Nobel), o que possibilita atrair alguns dos melhores alunos e investigadores do Mundo para as universidades e empresas portuguesas. Em segundo lugar, o MIT é a universidade americana com mais experiência e sucesso na criação de empresas de base tecnológica. Ao longo dos anos, 4000 empresas de base tecnológica que empregam actualmente mais de 1 milhão de pessoas e geram cerca de 232 mil milhões de dólares em vendas anuais foram criadas a partir do MIT.
Mas qual o interesse do MIT em Portugal? Vejamos, porque ele existe! O MIT considera Portugal um canal preferencial relativamente à UE, ao contrário da Alemanha ou a França que são considerados competidores pelos EUA. Adicionalmente, Portugal possui laços estreitos com o Brasil e com a África, o que permite estender a rede de contactos. Finalmente, a economia portuguesa é forte em sectores e indústrias tradicionais (cortiça, vidro, têxteis, moldes, vinho, madeira, calçado) que devido às matérias-primas, à tecnologia utilizada, e à qualidade dos seus produtos se tornam interessantes no mercado global, se apetrechadas com tecnologias de ponta.
O Plano Tecnológico
Com estas premissas em mente, o programa MIT-Portugal, iniciado há 6 anos, ganhou finalmente consistência no âmbito da Unidade de Coordenação do Plano Tecnológico, sob a orientação do Prof. José Tavares e com o engajamento do Ministério da Economia e do Primeiro Ministro. Neste sentido, efectuamos reuniões com cerca de 30 empresas portuguesas e multinacionais, com as universidades portuguesas, fundações, centros tecnológicos, associações industriais, instituições europeias e americanas. Para nossa satisfação, o programa MIT-Portugal gerou um grande entusiamo. As empresas viam uma alternativa para se lançarem nos mercados de alta tecnologia e terem acesso aos investigadores e aos laboratórios de I&D das universidades portuguesas e o do MIT. Inclusivé, muitas das empresas contactadas mostraram-se disponíveis para contribuir com níveis de financimento anuais entre 50 mil a 250 mil euros/ano. Uma multinacional chegou mesmo a propôr uma contribuição de 15 milhões de euros. Paralelamente, as universidades viam a possibilidade de colaborar com as equipas do MIT e das empresas portuguesas, resolvendo problemas de interesse para a economia nacional.
Contudo, em finais de 2005, depois das reuniões com as instituições portuguesas, depois de se mobilizarem as bases e a administração do MIT, depois de se trocar correspondência oficial entre o MIT e o Governo Português, depois da votação final favorável do Conselho do MIT; enfim, depois de 7 meses de negociações, o programa MIT-Portugal sofre um desvio repentino, alterando substancialmente o seu carácter. A questão que se coloca é: porquê?
O inesperado
Podem-se apontar duas razões principais. A primeira tem a ver com uma questão de autoridade e autoria. A segunda está associada a uma questão de risco. Ambas as razões ligadas intimamente a uma postura que continua a ofuscar o crescimento económico de Portugal. Esta postura é a repercussão 1) da experiência do período da ditadura, 2) da falta de contacto com o conceito de «modernidade» que se desenvolveu no Mundo Ocidental durante a revolução industrial, e 3) dos efeitos de um sistema paternalista. A ditadura inibiu a iniciativa, obrigou os cidadãos a confiar na autoridade, silenciou a discussão pública. A falta de conexão com o conceito de modernidade, onde o individualismo passou a sobrepor-se às estruturas hierárquias, retirou auto-confiança e responsabilidade aos cidadãos. Por sua vez, o sistema paternalista promoveu estruturas de liderança baseadas em hierarquias priveligiadas e exclusivas, as quais suspeitam frequentemente de ideias inovadoras, de pensadores e empreendedores jovens, com medo de perder estatuto.
No programa MIT-Portugal, esta postura autoritária e paternalista esteve sempre no cerne da controvérsia gerada, sepultando um projecto que poderia ter ramificações extraordinárias para Portugal. Concretamente, como se manifesta esta postura num programa como o MIT-Portugal?
Em primeiro lugar, a postura autoritária e paternalista não reconhece qualquer autoria que não seja sua. Por conseguinte, não é de estranhar que nas negociações correntes com o MIT os quatro elementos que conceberam e desenvolveram o programa MIT-Portugal deixaram de estar presentes. Esta postura é particularmente forte no caso do programa MIT-Portugal devido às dimensões do projecto (65 milhões de euros para 5 anos), e à visibilidade que estabeleceria em Portugal e além-fonteiras.
Em segundo lugar, a postura autoritária e paternalista é incapaz de partilhar o crédito pelo trabalho realizado em parceria. Pelo contrário, assume uma posição antagónica desde que não se sinta autor e/ou em controle. Em caso de sucesso, monopoliza os «louros». Perante uma situação de insucesso afasta-se. Enfim, uma postura extremamente perniciosa na dinâmica de inovação e globalização. A inovação é intrinsicamente um processo de co-autoria. Exige o envolvimento e a dedicação na vida nacional de cidadãos empreendedores, activos, responsáveis. Jovens ou séniores, mulheres ou homens, estes cidadãos têm que se sentir parte do progresso produzido. De contrário afastam-se dos problemas nacionais. Estabelece-se um sentimento de «falta de missão».
Em terceiro lugar, a falta de auto-confiança, a sobrevalorização dos erros relativamente aos sucessos e a dificuldade em assumir responsabilidade, aspectos resultantes da postura autoritária e paternalista, leva a que haja uma aversão geral ao risco. Neste sentido, há uma repulsão pelas grandes ideias, pelos grandes projectos, nomeadamente quando o resultado final é difícil de prever. As pequenas ideias, os pequenos projectos são portanto o tamanho ideal. Daí a alteração do projecto inicial MIT-Portugal, o qual envolvia as escolas de engenharia, de ciência, de arquitectura e de gestão do MIT; as universidades portuguesas, os laboratórios de Estado, os laboratórios associados e muitas empresas portuguesas; para um programa que envolve agora apenas a divisão de engenharia de sistemas do MIT e um pequeno grupo de instituições portuguesas. A diferença é simplesmente abismal.
À procura de nós
O projecto MIT-Portugal começou por ser um grande projecto. Recentemente passou a ser um projecto pequeno e de reduzido impacto. Infelizmente, mais do que nunca, Portugal precisa de grandes projectos, projectos ambiciosos. Projectos capazes de envolver os cidadãos e os diversos sectores da sociedade. Um fenómeno sintomático de um país em vias de crise em quando se fala sobretudo sobre o que o país foi no passado. Nao quero dizer com isto que se perca a nossa identidade. De forma alguma. Contudo, quando as memórias excedem os sonhos, é porque a sociedade não acredita em si, não acredita no futuro. Se excluírmos a passagem da ditadura à democracia, Portugal já nao arrisca há cerca de 500 anos. No caso do MIT-Portugal voltou a não fazê-lo, apesar de ter como parceiro a melhor escola do mundo de engenharia e de tecnologia.
Que Portugal e os portugueses têm inegável potencial e valor, não restam dúvidas. No entanto, queremos continuar a sustentar esta postura autoritária, paternalista, obsoleta, vigente no programa MIT-Portugal, ou queremos seguir em frente e ser o que potencialmente podemos ser? O futuro o dirá. Mas uma coisa é certa: se não formos nós portugueses a fazê-lo, ninguém o fará.
Fonte: Visão
Eis o comentário do que se passou neste programa, vindo de quem ajudou a lançar a ideia original. É por situações destas que tenho a ideia de que não precisamos que o governo nos ajude para evoluírmos, basta que não atrapalhe.